segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sementes da poesia



Neste domingo 16/2 comemoramos 8 anos do projeto "SEMENTE DA POESIA" , conduzido pela artista plástica e poeta Regina Mello.
Em homenagem a ela e ao projeto escrevi o poema abaixo.






Semente

Semente é o começo, é a origem, é o contato, semente é a conexão,
Semente se infiltra, se enfeita, se forja, semente se falta será comoção,
Semente tem força, tem forma, se agita, se ajeita, se acama no leito, no chão;
Semente se pouca, se parca, se poda, semente se farta,
Semente que não sai do chão...
Semente se compra, se vende, se rouba, se mente somente, semente é prisão;
Semente que cresce, que nasce,  que finge que morre mas não morre não;
Semente se arranca, se implanta, se espanta, se encanta ao se ver em botão;
Semente se bebe, se fuma, se injeta, se abate ou se apruma,
Semente do cão...
 
Semente, semente, semente, semente, semente...

Tudo que existe, um dia, se insiste e resiste,
Semente já foi,
Não importa se osso, se corpo, se unha, sem nome ou alcunha;
Semente primeiro ou semente depois;
Semente no ninho, na idéia, sozinho,
Semente se perde, sem ter atenção;
Semente se busca, de bike ou de fusca,
Semente tem hora, momento e ação;
Semente dá flor, da peixe, dá homem,
Semente no mar, na água, na fome,
Semente que some, semente é o meu coração,
Semente irradia, semente percorre,
Semente na seiva, na pinga, na cerva,
Semente no barro, semente no porre,
Semente está dentro, as vezes de fora,
Semente que vem, que vai, foi embora,
Semente é mistério, semente é o broto
Semente no preso, semente no solto,
Semente é harmonia, semente faz dia
Semente é domingo, semente na praça,
Semente que chora, semente acha graça
Semente-poesia que nasce qual pêlo,
Semente no som, semente no belo,
Semente é Regina, semente de Mello,
Semente é a luz, é o amor, é o zelo,
Semente acabada, encoberta, incubada
Semente é Cabelo, Cabelo, Cabelo....

.





sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pensão Familiar





O quarto é simples, quase pobre.
A mobília antiga contrasta com a cama de casal de armação metálica, molas e um colchão de espuma.
Duas mesinhas de cabeceira, mostrando sinais da idade nos descascados do verniz.
A chama do lampião à querosene, com vidro sujo e embaciado, se alterna vacilante ao sabor de uma pequena corrente de vento que insiste em penetrar no lugar.
Ao fundo, uma janela de caixilhos de ferro carcomidos pelo tempo e dois vidros trincados, evidenciam contornos do exterior.
Venta.
Duas árvores rangem se negando a curvar sob a intempérie que as imola.
Adivinha-se através delas a inquietude bravia do lugar...
Um cheiro ácido emanado da terra molhada por uma chuva medrosa, traduzia a própria dormência em que a natureza do entorno havia se deixado permear.
A luminosidade dentro do quarto
é insuficiente.
O realce e o brilho da chama provocam sombras nas paredes nuas e encardidas, à medida que se aprofunda o entardecer.
A sensação de peso morto contagia o ambiente e a sensualidade que esteve ali contida não parece mais dar sinais de existência nos dois corpos nus, saciados, que repousam na desordem dos lençóis.
O negrume da noite que se anunciava, preenche rapidamente o cômodo, aumentando o tom lúgubre que reina.
O som cantado de uma dobradiça de porta oxidada não é propriamente um barulho especial naquela espelunca, que a dona insiste em chamar Pensão Familiar.
Muito menos o som de passos pesados confundidos com os de passantes apressados no corredor contíguo ao quarto, que faziam a madeira do assoalho gemer.
A chuva aumenta.
Raios e lampejos pipocam flashes, como se fotografassem o ambiente e de seus ocupantes.
A chama do velho lampião serpenteia impotente, e as sombras que marcam as paredes, iniciam uma dança descompassada com figuras disformes, numa vã tentativa de acordar os amantes, como se antevisse o que estava para acontecer.
E, se não fosse pelo som abafado de quatro estampidos secos, seguidos, rápidos e precisos, aquele seria mais um mórbido entardecer ensaiado pelo dia e colhido pela chuva de verão.
Os corpos não tiveram chance. Foram pegos na surpresa de um sonho mau.
Bad dream, bad dream...
Espasmos e gestos contorcidos sinalizaram a reação inútil aos projéteis de 9mm que os penetrava, dilacerando-os, sem encontrar a menor resistência.
Lá fora a tempestade elétrica mostrava sua força.
Um brotar incessante de sangue começa a manchar os outrora quase brancos lençóis.
O assoalho geme novamente, fazendo dueto com as mesmas dobradiças enferrujadas.
A chama que se agitara com a abertura da porta e com o vento encanado, quedou-se finalmente, ereta e suave.
As sombras, agora, jazem estáticas, quietas, perfeitas.

Um trovão na noite, um grito de mulher e uma sirene...
Nada mais comum de se escutar naquelas paragens, nada mais comum...