Victor Hugo: Post-scriptum de
minha vida (1901)
Do livro Post-scriptum de ma vie,
publicado postumamente, em 1901. O livro apresenta seis Tas de Pierres (Montes
de pedras), pensamentos esparsos desse imenso pensador, espalhados por dois
capítulos: O Espírito e A Alma. O Espírito é subdividido em A Utilidade do Belo,
O Gosto, Os Grandes Homens e Promontorium Somnii.
Abaixo um trecho de 'O Gênio',
que faz parte de Os Grandes Homens.
Você está numa casa de campo,
chove, você pega um livro, o primeiro que encontra e se põe a ler esse livro
como leria o diário oficial ou a cópia de uma folha de avisos, assim, pensando
em outra coisa, distraído, bocejando. Pouco a pouco você se surpreende atento,
seu pensamento já não lhe pertence, sua distração se dissipa, uma espécie de
absorção, quase uma sujeição, a substitui, e você já não é dono de si mesmo, já
não é capaz de decidir 'vou me levantar e fazer outra coisa'.
Um livro é alguém. Preste
atenção.
Um livro é uma engrenagem. Tome
cuidado com essas linhas negras num papel branco; são forças que se atraem, se
completam, se compõem, se decompõem, penetram umas nas outras, giram em torno
de si mesmas, se desenrolam, se embolam, se acasalam, trabalham. Uma linha
morde, outra aperta e comprime, outra domina, e outra seduz. As
ideias são como o trilho de uma cremalheira.
Você vai se sentir puxado pelo
livro. E ele não o largará enquanto não estive seguro de ter mexido com seu
espírito. Há livros do qual os leitores saem inteiramente transformados. Homero
e a Bíblia operam esse tipo de milagre. Os espíritos mais altivos, os mais
finos, os mais delicados, assim como os mais simples e os mais
elevados, sofrem esse encantamento.
Shakespeare ficou embevecido com
Belleforest. La Fontaine ia a toda parte perguntando: você leu Baruch?
Corneille, maior que Lucan, ficou fascinado com seus poemas. Dante
deslumbrou-se com Virgílio, menor que ele.
Nem todos os grandes
livros são fatalmente irresistíveis. Podemos não nos deixar moldar por
eles, podemos ler o Alcorão sem nos tornar muçulmanos, ler os Vedas sem passar
a viver como um faquir, ler Zadig sem seguir Voltaire, mas não podemos deixar
de admirá-los. Aí está sua força. 'Eu te saúdo ou eu te combato, porque tu és
rei', dizia um grego a Xerxes.
(...) O que digo é tão verdadeiro
que é impossível admirar uma obra-prima sem ficar ao mesmo tempo satisfeito
consigo mesmo. É uma boa sensação ter compreendido. A compreensão aproxima. Há
na admiração algo que dignifica e fortalece a inteligência. O entusiasmo é
como um cordial.
Abrir um belo livro, mergulhar
nele, se perder em suas páginas, se envolver, que festa! Temos todas as
surpresas do inesperado ali, quase que ao vivo. As revelações do ideal são
golpes que se sucedem.
Mas o que, afinal, é o belo?
Não o defina, não esmiuce, não lute
contra, não crie dificuldades, não seja seu próprio inimigo à força de tantas
hesitações, inquietações, enrijecimentos. Há alguma coisa mais tola que um
pedante? Fique diante de si mesmo e admita: Deus é inesgotável, a arte é
ilimitada, a poesia não cabe em nenhuma escola literária assim como o mar não
cabe em nenhum vaso, ânfora ou jarra; seja simplesmente um homem sincero e
tenha a grandeza de aceitar que se encantou, deixe-se prender pelo poeta, não
conteste o efeito do que sentiu, aceite, sinta, compreenda, veja, viva, cresça!
O brilho da grandeza, aquela
'alguma' coisa que resplandece e que é sublime, eis o gênio. Algumas asas
que se batem ao longe. Você está com o livro nas mãos, sob seus olhos, de
repente parece que uma página se rasga de alto a baixo, como se fosse o véu do
tempo. Por esse buraco, o infinito é visto. Uma estrofe é suficiente, um verso
é suficiente, uma palavra é suficiente. O cume foi alcançado. Tudo foi dito.
Aquiles insultando Agamenon,
Prometeu acorrentado, os Sete Chefes diante de Tebas, Hamlet no cemitério, Jó
em seu martírio. Agora feche o livro. Pense. Você viu as estrelas.
Victor-Marie
Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 — Paris, 22 de maio de 1885) foi um
romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos
direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les
Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras. Está
enterrado no Panthéon, em Paris.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário aguardará o moderador para ser publicado.