(Texto escrito a partir de relato de minha mãe, Maria Helena Guimarães Pena, no retrato com 15 anos; meu avô, José Lima Guimarães abaixo com 47, e Joãozito acima com 37, em 1945 ... )
A consangüinidade resulta de parentesco predecessor, na união de entes familiares.
É inexorável, irrecusável, irrefutável.
Pode traduzir amizade, amor, empatia, lealdade, mas pode, também, não carregar nenhum destes predicados tão caros.
Não é causa e conseqüência.
Digo isto, pois consigo ver traços desta consangüinidade agindo em sua forma mais pura e preciosa, em pessoas que me cercam, nesta curta passagem do tempo, e através delas consigo imaginar outras, cujo tempo já passou, mas que nos legaram estes sentimentos maravilhosos, e nos permitem hoje ter uma convivência tão harmoniosa.
A eles, e por eles, rendo minhas modestas homenagens nestes escritos.
Sábiamente, nos lembra o protagonista de “Grande Sertão: Veredas :
-Viver é perigoso”, obra prima do imortal escritor João Guimarães Rosa, filho do casal Francisca e Floduardo Rosa e sobrinho de meu pai, meu primo.
Retruco ao mestre: Mas viver também é prazeroso.
Guardo lembranças de criança... 7 ou 8 anos teria, quando levada pela minha pequenina mão enlaçada à poderosa mão de meu pai, as vezes acompanhada de irmãos mais velhos, para visitar nossos tios. Passeio, diversão, não havia melhor finalidade.
Numa destas visitas, lembro meu pai conversando com um homem alto, que trazia um enfeite curioso junto ao pescoço: uma gravatinha borboleta xadrez, com tons de cinza e vermelho. Olhou para baixo, dentro dos meus olhos e depois para o homem :“ esta é a Leninha” . Achei engraçado a gravatinha e não escutei nada do que disseram sobre mim. Só tinha olhos para a gravatinha. O homem reparou em meu olhar e se abaixou: “gostou dela?” Estiquei a mão e peguei a gravatinha. “Chega Leninha, deixa o Joãozito levantar,” disse meu pai, ralhando em tom de brincadeira. Dei meia volta e desapareci correndo no quintal, procurando minhas primas, sem dar qualquer importância àquele encontro. Joãozito era um homem feito, médico, eu apenas uma criança.
Esta foi a primeira vez que me encontrei com Guimarães Rosa.
Anos mais tarde, já adolescente, 16 anos, fomos, meus pais, minha irmã Maria de Lourdes e minha prima Heloisa, passar uns dias no Rio de Janeiro.
Era outubro de 1945.
Embarcamos no Vera Cruz. Papai havia conseguido a cabine excelente, que foi oferecida a ele como cortesia pela Rede Ferroviária Federal. Magníficas as acomodações.
Antes registro o fato de ter sido acompanhada até o embarque por aquele que anos depois seria meu marido, Afonso Arinos Rocha Penna, de quem já era namorada, fazia alguns meses.
Feito este importante registro, continuo a narrativa.
Chegamos a Central do Brasil, desembarcamos e apanhamos um táxi. Havia uma anormal presença de soldados do Exercito, muito bem armados. Para onde olhássemos lá estavam os soldados.
Embarcamos no taxi, um Chevrolet 38. Ao virar a primeira esquina, começaram a aparecer tanques de guerra, enormes e barulhentos. Cruzaram nosso caminho soltando nuvens de fumaça preta. Sobre si trazia pilhas de soldados armados. Antes de chegar ao hotel fomos parados por um bloqueio militar. Tivemos que descer do carro e nossas malas foram abertas e revistadas.
Seguimos a corrida para o hotel. Meu pai virou-se para trás e com semblante tenso comentou alguma coisa com mamãe. Nós três, no banco de trás, ao lado dela, só tinhamos olhos para as vitrines e o mar.
Meu pai viajava muito a nogócios ao Rio e costumava ficar em um ótimo hotel na Cinelândia, na Av. Rio Branco, próximo aos teatros da época, que apresentavam Procópio Ferreira, Eva Tudor, e outros artistas. Sabia que teriamos que ter pernas para acompanhá-lo nesta empreitada divertida. Sua primeira providência no Hotel foi pedir para que se comprassem ingressos para esta ou aquela peça ou musical. Ele adorava “este” Rio dos shows.
Aquela noite, no entanto, não saímos. O Hotel cerrou suas portas e só entravam hospedes. As luzes foram diminuídas. Era quase penumbra. Não havia telefone. Pela janela do 5º andar víamos um movimento de Jeeps e Caminhões do Exército.
A alguns metros do hotel, dava para se ver um prédio com grandes colunas, meio acinzentado, com barricadas, tanques de guerra e homens armados á sua frente. Perguntei a meu pai o que era aquilo e ele nos explicou que era o prédio do Ministério da Guerra e lá estava o Marechal Dutra. Fiquei sabendo depois que naquela noite ele depôs o Presidente Getúlio Vargas.
De manhã bem cedinho, minha mãe nos acordou e mandou-nos preparar rapidamente, pois iríamos trocar de hotel.
E para minha surpresa fomos para o Copacabana Palace.
Um luxo só.
Tão logo nos instalamos naquela enorme suite, chega um mensageiro com um recado do Itamaraty: o Embaixador João Guimarães Rosa, solicitava a meu pai um horário para visita, ao tio e à sua familia.
Meu pai devolveu o recado convidando-o para almoçar conosco.
Recebemos Joãozito com muita alegria. Fomos novamente apresentados. Desta vez com mais formalidade. Lembrou-se ele do episódio da gravatinha borboleta de quase 10 anos atrás – naturalmente eu não me lembrava mais – e isto rendeu brincadeiras e chacotas de minha irmã e prima.
Conversou todo o almoço sobre sua vida de Embaixador, nos paises que servira, falou-nos de sua vida em Hamburgo onde estivera como vice-cônsul brasileiro e expressou sua revolta contra o autoritarismo nazista e pena dos pobres judeus, aprisionados em campos de concentração.
Referiu-se também aos jovens alemães que eram levados da casa de seus pais e educados pelo governo naquele regime absurdo.
Desta feita pude entender e apreciar melhor suas narrativas e o modo criativo de contar os fatos de sua própria vida. Mais tarde observaria semelhanças dessas palavras ouvidas com as escritas em seus livros.
Foi prazeroso estar com ele. Era uma pessoa que falava, falava e falava e nós não nos cansávamos de escutar. Em dado momento, minha irmã me cutucou com o braço e me mostrou que mais da metade das pessoas que almoçavam naquele momento, não conversavam: prestavam atenção à narrativa de Joãozito e riam das risadas dele e de papai, ao comentarem algum caso.
Minha irmã, pediu-lhe que falasse algumas palavras em japonês e ele pegou uma folha de jornal fornecida pelo hotel e leu as noticias neste idioma. Eu sugeri o alemão. Heloisa o russo e por aí afora, foram surgindo outros pedidos de outras mesas e esta mistura de línguas e dialetos, e curiosidades sobre a forma de falar deste ou daquele povo, transformando-se em brincadeiras, das quais rimos bastante.
Dez anos depois, foi a última vez que tive a oportunidade de estar com Joãozito foi em 1955. Eu já estava casada, com 2 filhos, morava em Brumado de Pitangui, e estava hospedada em casa de meus pais, acompanhando de perto a convalescença de papai.
Ao saber das noticia da doença de papai, Joãozito cancelou compromissos e veio a Belo Horizonte, visitar o tio. Ficou conversando com ele no quarto um bom tempo, e depois desceu e lanchou conosco. Parecia triste e abalado. Todos nós estávamos.
Ofereceu-se para mandar vir qualquer medicamento necessário e assim o fez depois da receita do médico de papai. Minha mãe deu a Joãozito uma caixa de goiabada feita em Pitangui. Ele agradeceu e abraçando-a disse que retornaria ao Rio no dia seguinte levando consigo aquele precioso presente.
Papai morreu em agosto daquele ano, mas Joãozito, que estava em viagem internacional, não compareceu ao enterro do tio querido.
Conversou todo o almoço sobre sua vida de Embaixador, nos paises que servira, falou-nos de sua vida em Hamburgo onde estivera como vice-cônsul brasileiro e expressou sua revolta contra o autoritarismo nazista e pena dos pobres judeus, aprisionados em campos de concentração.
Referiu-se também aos jovens alemães que eram levados da casa de seus pais e educados pelo governo naquele regime absurdo.
Desta feita pude entender e apreciar melhor suas narrativas e o modo criativo de contar os fatos de sua própria vida. Mais tarde observaria semelhanças dessas palavras ouvidas com as escritas em seus livros.
Foi prazeroso estar com ele. Era uma pessoa que falava, falava e falava e nós não nos cansávamos de escutar. Em dado momento, minha irmã me cutucou com o braço e me mostrou que mais da metade das pessoas que almoçavam naquele momento, não conversavam: prestavam atenção à narrativa de Joãozito e riam das risadas dele e de papai, ao comentarem algum caso.
Minha irmã, pediu-lhe que falasse algumas palavras em japonês e ele pegou uma folha de jornal fornecida pelo hotel e leu as noticias neste idioma. Eu sugeri o alemão. Heloisa o russo e por aí afora, foram surgindo outros pedidos de outras mesas e esta mistura de línguas e dialetos, e curiosidades sobre a forma de falar deste ou daquele povo, transformando-se em brincadeiras, das quais rimos bastante.
Dez anos depois, foi a última vez que tive a oportunidade de estar com Joãozito foi em 1955. Eu já estava casada, com 2 filhos, morava em Brumado de Pitangui, e estava hospedada em casa de meus pais, acompanhando de perto a convalescença de papai.
Ao saber das noticia da doença de papai, Joãozito cancelou compromissos e veio a Belo Horizonte, visitar o tio. Ficou conversando com ele no quarto um bom tempo, e depois desceu e lanchou conosco. Parecia triste e abalado. Todos nós estávamos.
Ofereceu-se para mandar vir qualquer medicamento necessário e assim o fez depois da receita do médico de papai. Minha mãe deu a Joãozito uma caixa de goiabada feita em Pitangui. Ele agradeceu e abraçando-a disse que retornaria ao Rio no dia seguinte levando consigo aquele precioso presente.
Papai morreu em agosto daquele ano, mas Joãozito, que estava em viagem internacional, não compareceu ao enterro do tio querido.
Enviou telegrama para minha mãe do México, onde dizia estar extremamente abalado e chorando a grande perda de seu maior amigo.
Anos se passaram até o 16 de novembro de 1967, uma data especial e inesquecível para toda a família.
O escritor João Guimarães Rosa tornara-se membro da Academia Brasileira de Letras.
Aqui em Belo Horizonte, dias depois, todos estavam ainda comemorando este grandioso acontecimento do dia da posse quando chegaram as terríveis noticias.
Fazia apenas três dias desde sua assunção à imortalidade, conferida pelos seus mortais colegas de pena, quando ele, literalmente, apropriou-se de seu postulado e encantou-se.
Dele, ficou guardada em meu coração, uma frase sobre meu pai, que muito me orgulha e comove, principalmente, sido dita por quem disse:
“Se Deus quiser mesmo consertar o mundo, basta espalhar a semente do tio Juquita por aí...”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário aguardará o moderador para ser publicado.