domingo, 21 de fevereiro de 2010

Mutatis & Mutantes

Os Mutantes / Arnaldo


O dia se fez com aquele céu limpo, tão comum nos dias de abril. Poucas nuvens, esparsas.
Depois de um copo de café puro, bem forte, traçado com 8 gotas de veneno doce, acordei, de fato.

-“Querido, (quando minha mulher me chama de querido em pleno acordar, e num domingo, tem coisa...)
hoje é o batizado da filha da Ana. Vai ser lá naquela Igrejinha da avenida Carandaí, lembra dela, não é “
...e passa rapidamente com o rosto todo empapado de cremes e com o secador na mão, rumo ao banheiro.
-“Batizado ? domingo ? de manhã? E eu com isso? perguntei com ares de pouco interesse...
-Vai ser coisa rápida, poucas pessoas e... ela é tão boazinha... ela e o Mário...lembra dele, não é? Eu comprei um presentinho pro nênem e queria que você ...vruuuuuuummmmmmm , ligou o secador e não escutei mais nada.

Temporona. Casamento de velho. Ela já passou dos 45, apesar de tentar fazer tipo menos de 40, e ele dos 55, com um jeitinho de mais de 60.
Tentaram muito ter um filho, e veio a neta, depois de 3 tipos de tratamentos, rezas e outras macumbas. Conseguiram, finalmente.

... vruuuuummmm ...e não vai demorar nada. Eu mandei passar aquela camisa com listas, aquela que te põe mais magro... ta pendurada aí perto dos ternos, terminou minha mulher.
10 horas. Estamos nós no batizado.
Uma igrejinha simpática, pequena, mas aconchegante, sem luxo.
Por ficar próximo ao centro de Belo Horizonte, é pouso de todo tipo de pessoas, sem-teto, sem-dinheiro, sem-assunto, sem-chance na vida...
Era a Igreja-dos-Sem.
Principalmente depois que indaguei minha mulher o porquê de se fazer o batizado lá.
-O padre é amigo de uma amiga e se dispôs a batizar a menina, filha de casal que não casou na Igreja e por isto não fez o tal cursinho pra batizar.
Em suma, mais gente para a turma dos “Sem”, os Sem-casamento, os Sem-curso-de-padrinho, e os novos Sem-benção-da-igreja.
Havia mais dois casais com filhos pra batizar, todos munidos de avôs e avós, tios e tias e, naturalmente, todos associados à turma dos “Sem” na Igreja-dos-Sem.
Zuuuuuuuuuummmm....conversa era discreta, tom baixo, como condiz ao lugar.
Todos na espera pelo padre.
Nos instalamos mais ao fundo, o que numa Igreja pequena é dizer pouco.
Umas 15 fileiras de bancos, somente.
Um rápido giro de olhar e reparo em uma pessoa sentada a umas 5 fileiras à frente.
-“Conheço aquele cara, falei pra minha mulher. Não sei de onde, mas conheço.”
-“Claro que conhece, ironizou minha mulher, ”é o Arnaldo, dos Mutantes.”
-“Arnaldo, dos Mutantes? Tá brincando?”
-“Claro que não. Ele mora lá no Morro do Chapéu, com a Fulana, amiga da Ana.”
Esqueci o batizado.
Fiquei só olhando o cara.
Franzino, meio careca, olhar de menino espantado, reparando em tudo, como se tudo fosse novo pra ele.
Levantei e cochichei pra minha mulher.
-“Vamos sentar mais perto dele.”, ..

Bicho, o Arnaldo dos Mutantes, meu. Mutantes, Rita Lee, meus 14/20 anos, “ dizem que sou louco - pra onde eu vou, venha também – hoje eu vou sair de casa vou.”...
Voltei lá trás, em 66/71. Discos de vinil, long play dos Mutantes, festivais, shows dos Mutantes, viajei em pleno batizado.
E com isto ele realmente foi muito rápido, como previra minha mulher, e eu fiquei com o Arnaldo na cabeça.
Na saída, todo mundo a cumprimentar o casal e elogiando a menina.
Eu também, mas vigiando o Arnaldo.
-“Eu vou falar com ele, falei com minha mulher.”
-“Que besteira, deixa de bobagem, deixa ele em paz.”
-“Não, eu vou lá.” E fui.

Tenho 1,84 e peso mais de 120kg. Sou literalmente, dois Arnaldo.
Bati em seu ombro. Ele se virou e me olhou, botou a mão no rosto pra ver melhor, pois teve que olhar para cima e o sol veio direto em seus olhos.
O olhar dele era amigável, de gente conhecida, manso, aquele olhar que agente tem depois de tomar umas, risonho, desprevenido.
-“Arnaldo, me desculpe o assédio, o atrevimento, mas eu tive que vir falar com você.” Ele balbuciou alguma coisa que eu não entendi, e eu continuei:
-“Bicho, você é o Arnaldo dos Mutantes, não é mesmo?”
-“Sou, mas... mas eu te conheço?” Falou com voz mansa...
-“Não bicho, eu sou somente um de seus milhares ou milhões de fans, parados no tempo”.
Ele continuava a me olhar curioso. Ensaiou um riso de quem reconhece um quase parente.
Parente, era o que eu me considerava daquele cara. Eu conhecia quase tudo deles.
-“Bicho, se você tiver me achando meio sacal, meio bobão, pô, me perdoe por isto”...
-“De jeito nenhum”, ficou sério, “você é que me desculpe, pois não tenho mais o costume de ser abordado assim e as vezes posso cometer alguma indelicadeza”...
-“Indelicadeza, jamais, de jeito algum, você não conseguiria.
O Arnaldo de que me lembro nunca faria isto. É ídolo, é músico, é um Mutante, é a única banda brasileira listada na Bilboard e reconhecida mundialmente...”

Ele tentou falar mas minha ansiedade era muita e eu soltei o verbo:
-“Olha, eu sei que você deve ter coisa pra fazer, me desculpe novamente”, insisti, “mas eu queria deixar registrado uma coisa pra você: nesta vida nos lutamos pra ser alguém e isto significa, fazer diferença na vida de pessoas que nos cercam, dos que nos são próximos, nossos filhos, amigos, conhecidos, uma pequena que seja, mas uma diferença que seja boa, construtiva, amiga, para que eles gostem de nós. No fundo é uma troca. E nós, inconscientemente, precisamos disto. Nos alimenta. Normalmente conseguimos um pouco com nossos filhos, esposa, amigos, em um número relativamente pequeno de pessoas. A grande maioria se dá por satisfeita se conseguir isto. Mas você, você fez diferença em uma geração de jovens, uma geração inteira...quantos? 5 milhões, 10 milhões, 20 milhões de pessoas jovens que tiveram Mutantes, Arnaldo e Cia em sua vida e os levam por sua vida, e passam para seus filhos, e que toda vez que ouvem alguma música que vocês tocaram pra nós, naquele tempo, nos faz voltar ao melhor tempo da vida de qualquer ser humano, a adolescência, onde se vive de emoções e para elas e elas estão afloradas, vivas, expostas, e sendo sentidas em sua plenitude, em sua total potencialidade. Vocês fizeram isto com estas pessoas. Como você se sente, como é pensar sobre isto, conviver com isto?”
Disse isto tudo a ele, numa tacada só e olhando em seus olhos.
Vi que ao final do meu “discurso” seus olhos estavam molhados, quase lacrimejando, seu rosto suava, suas mãos tinham um leve tremor....
Ele engasgou ao tentar falar... não saiu nada.
Me deu um abraço apertado, depois passou a camisa de manga comprida nos dois olhos, me olhou e sussurrou : “Obrigado..”.
Virou de costas e não olhou para trás.
Com os olhos minados de lagrimas, respondi :
- Obrigado a você....
A mão de minha mulher puxou meu braço:
-Vamos...

Um comentário:

  1. Velho isso é verdade, Arnaldo Baptista talvez não tenha noção do tanto que ele muda a vida das pessoas. Do impacto que causa no nosso ser. Eu mudei muito pessoalmente falando depois de enteder a sua música.... Ainda tenho vontade de encontrá-lo algum dia!
    E valeu por compartilhar esse momento com a gente!

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