quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Crônica de uma morte precipitada



1967. Todo domingo era assim. Acordava cedo.
7 da manhã e lá estava eu a lavar o carro de meu pai. Chevrolet 1954, Bel Air, 4 portas, azul claro com teto branco, comprado de meu tio há 5 anos e extremamente bem conservado. Seus 6 cilindros em linha forneciam espantosos 110 CV com aproximadamente 3000 cc. Três marchas a frente e uma à ré (como se dizia na época) , sendo a segunda e terceira sincronizadas. Era o conforto sobre rodas. Era um Chevrolet.
Algumas quadras abaixo da minha rua, dois de meus amigos estavam fazendo o mesmo.
O Anjinho, ligando a Caminhonete Ford 1949, vermelhona, motor possante de 8 cilindros em “V” com uns 100 CV de força, caixa seca - isto é, mesmo pisando na embreagem se não desse o tempo certo, ainda arranhava para entrar. E o outro amigo, vizinho do Anjinho, GoodTime.
Sua família tinha uma condição financeira melhor e ele ostentava um moderno Aero Willys 1964, modelo Monte Carlo, cinza chumbo, motor de 6 cilindros em linha, com uns 120 CV disponíveis debaixo do capô e, pasmem, caixa de 3 marchas, totalmente sincronizada. Era uma beleza. Bastava pisar na embreagem, com o motor ligado em qualquer rotação, e a marcha entrava suave. Fantástico. Que tecnologia.
Já tínhamos este costume há algum tempo. Eu, como o mais velho dos três, fui quem iniciou este esquema.
Levantar bem cedo, de manhã, domingo, com o pai dormindo até mais tarde, com desculpa de que vai lavar o carro, tirar ele da garagem, jogar uma águinha rapida e ... vamos nós para uma volta no quarteirão. Do quarteirão para a praça mais próxima foi um pulo e daí para um rolé no bairro foi questão de um mês. Mole...

14, 15 anos de idade, e no controle daqueles “bólidos”... Era demais!!!
Lá em cima, no fim do bairro Sion, em Belo Horizonte, tinha estrada para o Clube Teuto-Brasileiro – um clube de alemães – e na estrada a famosa(pra nós, pelo menos) ”curva do Teuto”, que era encardida de fazer de pé em baixo. Tentei algumas vezes mas o Chevrolet era muito pesado e rodava direto. Tinha que aliviar e dar uma freada antes de entrar. O Anjinho, com a Fordona, com pouco peso na trazeira, saia de frente e subia no passeio, toda vez que tentava. O único que fazia com mais velocidade era o GoodTime. O Aero Willys era mais leve e mais potente. Mas fazia no limite. Varias vezes ele rodou.

Aquele domingo o GoodTime atrasou. Não era costume nosso atrasar. Éramos muito pontuais. Já o esperávamos há uns 30 minutos quando ele apareceu.
-Demorei. Meu pai vai viajar pra Divinópolis e eu tive que colocar toda a bagagem no porta-malas.
Dava pra ver que o carro tinha arriado um pouco a trazeira.
Mas como domingo é domingo, fomos dar nosso “sagrado” rolé e, naturalmente, em nosso caminho estava a curva do Teuto. Eu fui primeiro e dei uma rodada daquelas, quase subi no passeio. O Anjinho veio logo após e subiu no passeio. Ficamos esperando o GoodTime na esquina de baixo, para ter uma boa visão do que ele faria.
O Aero entrou todo torto. O Anjinho gritou do meu lado : - Num vai dar, tá muito rápido, ele vai bater no poste!!!
E não deu outra. Enfiou a frente no poste,
Corremos lá.
Tava tudo bem com ele. O carro amassou um pouco o paralama dianteiro direito e o pára-choque. Mas como eram feitos de lataria grossa (não é como atualmente que a lata é uma casca e o resto é plástico), o Aero agüentou bem a porrada.
-Meu pai vai me matar, falou um assustado GoodTime. Como tinha levantado alguma poeira e sujado o carro ele achou melhor ir pra casa logo e jogar uma água, pra melhorar a impressão do automóvel, antes que o pai acordasse.
-Vou falar que bati no muro em frente ao tirar o carro da garagem, que o acelerador agarrou ou a embreagem soltou do meu pé... vou pensar em alguma coisa deste tipo.
E fomos todos pra casa do GoodTime.
Deu tudo errado.
Quem estava lá na porta de casa, em pé, esperando o carro ? O pai, a mãe, as irmãs e mais bagagem no chão.
GoodTime estacionou o carro e desceu. A porta rangeu e fez um barulho de roda de carro de boi ao abrir.
-Que que isto meu filho, que barulho é este? Perguntou o pai.
-Deve ser falta de lubrificação, pai..
O pai rodeou o carro e viu o pára-choque e o paralama amassados:
- E isto aqui? Também é falta de lubrificação? Gritou o velho já emputecendo...
- Não pai, eu dei uma batidinha ali no muro quando eu fui tirar o carro e eu ia te falar...O pai rodeava o carro a procura de novas evidências da batida. Não achou.
-Foi só ali, murmurava o GoodTime...O resto não teve nada, quer ver? E foi tentar abrir a porta trazeira do lado do motorista. Nada. Tentou, tentou, mexeu no pino da tranca e... nada.
Travadinha.
-A fechadura deve ter travado, é só lubrificar... e deu a volta e foi abrir a outra porta trazeira e ...nada. Travada também.
Bom, desculpa de fechadura já não ia colar.
- Vou tentar soltar a porta por dentro, deixa eu pegar umas ferramentas aqui no porta-malas.

Pra que...
Meteu a chave na tranca do porta-malas e...nada do porta-malas se abrir.

(Nota de Esclarecimento: diferentemente dos carros atuais, que são uma casca e não suportam uma batida, os carros antigos eram feitos sobre chassis de ferro. Toda a lataria ficava presa nele. E bastava uma porrada em um lado do chassis para empenar todo o carro. Nada mais estava alinhado. O que parecia uma simples batidinha foi na verdade uma porrada forte, amortecida pelo chassis, que dividiu seu impacto por todo carro.)

GoodTime ainda tentava abrir o porta-malas, abaixado, de quatro, mexendo por baixo do carro, quando seu pai num acesso de puteza tomou distância e lhe deu um tremendo chute na bunda e gritou pra ele:.
“ POOOOSSO VIAJAAAARRRR? AGORA EU TE PERGUNTO : POOOOSSO VIAJAAARRRR ?

Não ficamos ali pra saber a resposta. Eu e o Anjinho cascamos fora.


Este foi um episódio que sempre lembraríamos em nossas farras, anos depois. Era só o GoodTime aparecer e todo mundo :
“ POOOOSSO VIAJAAAARRRR? AGORA EU TE PERGUNTO : POOOOSSO VIAJAAARRRR ?

40 anos depois, todos nós casados, filhos e muitos planos. A vida seguia.
Mas... (tem sempre um “mas” pra acontecer...) E aconteceu.
Repentino...
Muito gordo, e sempre fazendo regime.
E numa mistura de regimes bravos com exercícios físicos além da conta, veio-lhe um infarto aos 52 anos. Em plena academia, com fisioterapeuta e tudo mais ao lado.
Não houve jeito.
Ele era assim. Sempre foi 8 ou 80.
Era pra fazer uma coisa?
Ele fazia. Com mais vontade que todo mundo, como a curva do Teuto.
Se alguém ia conseguir fazê-la, com pé-em-baixo, este alguém era o GoodTime.

GoodTime nos deixou, contra a vontade de todos: seus filhos, mulher e demais parentes, e, infelizmente, contra a nossa vontade.

Parece que foi outro dia mesmo, a missa de sétimo dia.
E agora, GoodTime, pra quem vamos perguntar:
“ POOOOSSO VIAJAAAARRRR? AGORA EU TE PERGUNTO : POOOOSSO VIAJAAARRRR ? “

A resposta ainda está entalada em nossas gargantas, até hoje, sete anos depois:
-Não, não pode não, amigo GoodTime. Tá muito cedo. Fica mais...

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