quinta-feira, 29 de março de 2012

A morte da águia, poesia de de Luís Guimarães

A morte da águia


A bordo vinha uma águia. Era um presente
Que um potentado, — um certo rei do Oriente,
Mandava a outro: — um mimo soberano.
Era uma águia real. Entre a sombria
Grade da jaula o seu olhar luzia,
Profundo e triste como o olhar humano.

Aos balanços do barco ela curvava
Ao níveo colo a fronte que cismava…
E enquanto as ondas túrbidas gemiam,
Ao som do vento – em fúnebres lamentos
Ela pensava nos longínquos ventos
Que do Himalaia os píncaros varriam.

Fora uma infame e traiçoeira bala,
Que, do régio fuzil negra vassala,
Invisível – uma asa lhe partira:
Cheia de luz, tranqüila, majestosa,
Dobrando a fronde branca e poderosa,
Aos pés de um rei a águia real caíra.

Os bonzos vis, proféticos doutores,
Sondando-lhe a ferida e as cruas dores,
Que um venenoso bálsamo tentava
Apaziguar em vão, — diziam rindo:
“Não há no mundo exemplar mais lindo:
Vale um império!” – E a águia agonizava.

Um dia, enfim, o animal valente
Resistindo aos martírios, — largamente
Respirou a amplidão. A asa possante
Abrir tentou de novo. Aberta estava
A jaula colossal que o esperava:
Forçoso era partir. Desde este instante,

A águia sombria e muda e pensativa,
Solene mártir, vítima cativa,
Terror dos vis e símbolo dos bravos,
Pediu a morte a Deus, — pediu-a ansiosa
Longe, porém, da corte vergonhosa
Desse covarde e baixo rei de escravos.

Pediu a morte a Deus, o cataclismo,
As convulsões elétricas do abismo,
As batalhas finais! Morrer num grito
Vibrante, imenso, heróico, soberano,
E fremente rolar no azul do Oceano,
Como um titã caído do infinito.

Morrer livre, cercada de vitórias,
Com suas asas – pavilhão de glórias –
Inundadas da luz que o Sol espalha:
Ter o fundo do mar por catacumba,
As orações do vento que retumba,
E as cambraias da espuma por mortalha.

Entanto, melancólica, tristonha,
Como um gigante mórbido que sonha,
Fitava, às vezes, o revolto oceano,
Com esse olhar nublado e delirante,
Com que saudava a César triunfante
O moribundo gladiador romano.

O comandante – urso do mar bondoso —
Disse um dia ao escravo rancoroso,
Ao carcereiro estúpido e inclemente:
“Leve-a ao convés. Verá que esse desmaio
Basta para apagá-lo um brando raio
Do largo Sol no rúbido oriente.”

Subiu então a jaula ao tombadilho:
Do nato dia ao purpurino brilho
Salpicava de luz o céu nevado…
E a águia elevando a pálpebra dormente
Abriu as asas ao clarão nascente
Como as hastes de leque iluminado.

O mar gemia, lôbrego e espumante,
Açoitando o navio; — além – distante,
Nas vaporosas bordas do horizonte,
As matutinas névoas que ondulavam,
Em suas várias curvas figuravam
Os largos flancos triunfais de um monte.

“Abre-lhe a porta da prisão,” ( ridente
O comandante disse ) “Esta corrente
Para conter-lhe o vôo é mais que forte!
Voar! pobre infeliz! causa piedade!
Dê-lhe um momento de ar e liberdade!
Único meio de a salvar da morte.”

Quando a porta se abriu, — como uma tromba,
Como o invencível furacão que arromba
Da tempestade as negras barricadas,
A águia lançou por terra o escravo pasmo,
E desprendendo um grito de sarcasmo,
Moveu as longas asas espalmadas.

Pairou sobre o navio — imensa e bela –
Como uma branca, uma isolada vela
A demandar um livre e novo mundo;
Crescia o Sol nas nuvens refulgentes,
E como um turbilhão de águias frementes,
Zunia o vento na amplidão, – profundo.

Ela lutou, ansiosa! Atra agonia
Sufocava-a. O escravo lhe estendia
Os miseráveis e covardes braços;
Nu o oceano ao longe cintilava
E a rainha do ar, em vão, buscava
Onde pousar os grandes membros lassos.
 

-Calma, disse o rei de escravos, placidamente,
Ela não tem pra onde ir,
Há que aqui pousar...Um tempo, somente...
Sobre o barco, pairou a linda, — e alçando, e
Alçando mais os vôos, e abrasando
Na luz do Sol a fronte alvinitente,
 

Ébria de espaço, ébria da imensidade,,
Como um astro que risca o céu do mundo,
Sob os olhares de seus carrascos, atônitos,
Deixou a vida enjaulada, a sordidez platônica, e
E foi de encontro à prometida eternidade,
Afundando-se nas ondas bravias, 

Como se a morte em liberdade fosse um presente!

Quem foi :
Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior (RJ 1847 – Lisboa 1898), advogado, jornalista, ministro, diplomata, poeta, romancista, teatrólogo. Estudou no Colégio Calógeras em Petrópolis e cursou as faculdades de Direito de São Paulo e do Recife. Colaborador dos periódicos A reforma, A república, O correio paulistano, Imprensa Acadêmica de São Paulo, Gazeta de Notícias. Membro da Academia Brasileira de Letras, membro da Academia de Belas Artes do Chile, membro da Academia do Quiriti em Roma, membro da Arcádia Romana, membro da Sociedade de Geografia Italiana, oficial da Ordem da Rosa, oficial da Ordem de Cristo e da Ordem de São Tiago, cavaleiro da Ordem Romana do Sepulcro e da Ordem de São Gregório Magno.

Obra:

A Alma do outro mundo, 1913
A Carlos Gomes, 1870
A entrada no céu, 1882
A família Agulha, 1870
A morte, 1882
André Vidal, séc. XIX
As Jóias indiscretas, séc. XIX
As Quedas fatais, séc. XIX
Ave Estela, 1865
Contos sem pretensão, 1872
Corimbos, 1866
Ernesto Couto, 1872
Filigranas, 1872
Lírica, 1880
Lírio Branco, 1862
Mater dolorosa, 1880
Monte Alverne, séc. XIX
Noturnos, 1872
O Caminho mais curto, séc. XIX
Os Amores que passam, séc. XIX
Pedro Américo, 1871
Um Pequeno demônio, séc. XIX
Uma Cena contemporânea, 1862
Valentina, séc. XIX

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