quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Poemas de FERREIRA GULLAR




VOLTAS PARA CASA
ferreira-gullar-rosto-metade

Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.

Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonaste, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.

De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leitura de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que viste:
a vida, a vida é bela!

A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Míriam, de Luísa...

Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.

Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para eles
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outro dia.
 
 
 ferreira-gullar-rosto-metadeNão há vagas


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira


ferreira-gullar-rosto-metade

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
 
 
 

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