sábado, 1 de fevereiro de 2014

Pensão Familiar





O quarto é simples, quase pobre.
A mobília antiga contrasta com a cama de casal de armação metálica, molas e um colchão de espuma.
Duas mesinhas de cabeceira, mostrando sinais da idade nos descascados do verniz.
A chama do lampião à querosene, com vidro sujo e embaciado, se alterna vacilante ao sabor de uma pequena corrente de vento que insiste em penetrar no lugar.
Ao fundo, uma janela de caixilhos de ferro carcomidos pelo tempo e dois vidros trincados, evidenciam contornos do exterior.
Venta.
Duas árvores rangem se negando a curvar sob a intempérie que as imola.
Adivinha-se através delas a inquietude bravia do lugar...
Um cheiro ácido emanado da terra molhada por uma chuva medrosa, traduzia a própria dormência em que a natureza do entorno havia se deixado permear.
A luminosidade dentro do quarto
é insuficiente.
O realce e o brilho da chama provocam sombras nas paredes nuas e encardidas, à medida que se aprofunda o entardecer.
A sensação de peso morto contagia o ambiente e a sensualidade que esteve ali contida não parece mais dar sinais de existência nos dois corpos nus, saciados, que repousam na desordem dos lençóis.
O negrume da noite que se anunciava, preenche rapidamente o cômodo, aumentando o tom lúgubre que reina.
O som cantado de uma dobradiça de porta oxidada não é propriamente um barulho especial naquela espelunca, que a dona insiste em chamar Pensão Familiar.
Muito menos o som de passos pesados confundidos com os de passantes apressados no corredor contíguo ao quarto, que faziam a madeira do assoalho gemer.
A chuva aumenta.
Raios e lampejos pipocam flashes, como se fotografassem o ambiente e de seus ocupantes.
A chama do velho lampião serpenteia impotente, e as sombras que marcam as paredes, iniciam uma dança descompassada com figuras disformes, numa vã tentativa de acordar os amantes, como se antevisse o que estava para acontecer.
E, se não fosse pelo som abafado de quatro estampidos secos, seguidos, rápidos e precisos, aquele seria mais um mórbido entardecer ensaiado pelo dia e colhido pela chuva de verão.
Os corpos não tiveram chance. Foram pegos na surpresa de um sonho mau.
Bad dream, bad dream...
Espasmos e gestos contorcidos sinalizaram a reação inútil aos projéteis de 9mm que os penetrava, dilacerando-os, sem encontrar a menor resistência.
Lá fora a tempestade elétrica mostrava sua força.
Um brotar incessante de sangue começa a manchar os outrora quase brancos lençóis.
O assoalho geme novamente, fazendo dueto com as mesmas dobradiças enferrujadas.
A chama que se agitara com a abertura da porta e com o vento encanado, quedou-se finalmente, ereta e suave.
As sombras, agora, jazem estáticas, quietas, perfeitas.

Um trovão na noite, um grito de mulher e uma sirene...
Nada mais comum de se escutar naquelas paragens, nada mais comum...

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